patavinas

Às vezes é difícil decidir o que dói mais, escrever ou engolir as palavras. Deixar que elas entrem em contato com tudo que está dentro da gente, deixar que elas se percam num estômago faminto, num coração acelerado ou num fígado mal-humorado.

Friday, December 17, 2010

Complexo do cantor de blues

Pouca gente deve se lembrar de um comercial de cerveja ( o nome da cerveja nem eu lembro) que tinha o espírito do blues como tema. É algo parecido com dor de corno, mas um pouco mais profundo e abrangente. O blues é tranqüilidade de se saber que não há mais o que dar errado, tudo que podia ir pro beleléu já foi. Só resta aproveitar a solidão dos mortos nessa vida para ouvir o choro de uma guitarra e os gritos de dor de um crioulo ou o choro de um crioulo e os gritos de dor de uma guitarra, dá no mesmo.
Entendida essa parte, volto ao comercial. O cara ( um crioulo) estava numa fazenda e tudo estava perfeito. A plantação era verde e saudável, fazia um lindo dia de sol, sua esposa assoviava feliz enquanto passava a roupa e o cara, em vez de aproveitar tamanha perfeição, olhava pros lados com cara de desconfiado, como se soubesse que seu destino era chorar junto com uma guitarra e não sorrir com a sua mulher. Imediatamente entram centenas de nuvens no céu. Começa a chover e ventar a ponto de destruir a plantação. Seguindo o rumo da desgraça, a mulher do cara começa a berrar, joga o ferro longe, arruma a mala e vai embora largando a casa de pernas pro ar. A porta bate e rebate, uma vez pela força da mulher, outra pela força do vento e o abandono toma conta do ambiente. O cara, que não saiu de sua cadeira, olha em volta e, pela primeira vez nos trinta segundos de um comercial, dá um sorriso. Em seguida, levanta, pega uma cerveja e começa a tocar a guitarra. Fecha no logo da cerveja. Pros apreciadores de um blues.
Nunca me identifiquei tanto com um filme publicitário. É um tipo de alegria estranha que só acontece quando não há com que se alegrar. O blues é alegria que mora em todas as tristezas.
As pessoas que tem o complexo do cantor de blues são como o cara desse filme. Elas não conseguem aceitar a felicidade sem um olhar desconfiado que espera uma tempestade. Elas sabem que o tempo vai mudar e mal podem esperar até que isso aconteça pra relaxar finalmente.
Hoje eu estou quase muito feliz, porque tem esse complexo que não me deixa aceitar a felicidade como ela é. Não consigo evitar pensar no que vou fazer quando tudo acabar. E, por incrível que pareça, tenho menos medo de uma reprise de desgosto do que da alegria inédita.
Eu sei que tudo tem sua primeira vez. Mas o único consolo do cantor de blues é que a primeira vez pode também ser a última.

Gisela Cesario