patavinas

Às vezes é difícil decidir o que dói mais, escrever ou engolir as palavras. Deixar que elas entrem em contato com tudo que está dentro da gente, deixar que elas se percam num estômago faminto, num coração acelerado ou num fígado mal-humorado.

Saturday, January 09, 2010

Compulsão

Resistir à compulsão. Tudo que se faz quando não se está escrevendo é resistir à compulsão. Diferente de outras compulsões que nos provocam ressacas ou tumores na garganta, escrever provoca coisas diferentes a cada vez, a única sensação sempre obtida é o alívio. Primeiro satisfazer a necessidade, depois provar o gosto. Escreve-se como se come. É um instinto como qualquer outro, presente em seres agonizantes chamados escritores. A maior prova do desespero do escritor é essa. Escrever sobre o nada. Escrever sobre o escrever. Claro que ninguém quer falar sobre isso, é só uma desculpa para falarmos de algo tão chato que só se justifica por compulsão. Hoje o tema da redação é: mudanças do mundo.
Os alunos aplicados escreverão sobre o aquecimento global, como as pessoas não devem ser malvadas e devem sempre fechar a torneira enquanto escovam os dentes. Os alunos debiloides dirão que o computador mudou o mundo, tudo é pelo celular, será que isso é bom? Importantíssimo questionamento. Já os alunos como eu, que consideram meio ambiente a sala em que estão e computador um treco que se usa pra escrever falarão sobre coisas realmente importantes, como o fato de o mundo só piorar. É colocarão um ponto final depois dessa afirmação só pra dar aquele ar de suspense. E aí dirão algo que ninguém vai entender como: tudo começou com o insulfilm. Que porra é essa? Pensarão os leitores, claro que eles sabem o que é insulfilm, eles não sabem o escritor quer dizer com isso. Bom, dirá o escritor, o insufilm colocado nos carros distanciou os motoristas, tornou-os seres desconhecidos, antes a gente via quem estava do nosso lado, trocavam-se sorrisos ou xingamentos, começavam grandes amores ou ódios curtos. Mas aquilo que trafegava ao nosso lado era, antes de tudo e do insufilm, um ser humano. Na verdade, e aqui o escritor já começou a embaralhar as coisas, antes do insufilm veio a obrigatoriedade de usar cinto. Sabe que existe gente tão nova que não sabe que nós, brasileiros, ignorávamos o cinto? Não estou hoje, dirá o escritor de saco cheio, com disposição para aturar quem repete o que ouve no jornal nacional, estatísticas mascaradas, uma vergonha para os profissionais de estatística e de jornalismo.
Nossa vida era melhor, diz o escritor, era uma vida de verdade. Será que as pessoas não percebem que o existe por trás do cinto, do insufilm, do radar e de tudo o mais é dinheiro, é venda. Venda é diferente de vida. Nenhum cinto vai me proteger porque eu só ando a 60 km por hora no máximo, porque nossas ruas são todas esburacadas e cheias de carros engarrafados. O insufilm só serve para você deixar de paquerar o seu vizinho, que bem podia ser coisa boa, mas você não ta vendo. Não tenho nem estômago para falar da lei seca, de tanto que já bebi pra esquecer. Só posso dizer mais uma coisa, finalizará o escritor, quando pensávamos que a pior epidemia do mundo era a música eletrônica, inventaram boates cariocas com música sertaneja. Aqui é o inferno? É claro que sim, basta olhar o balão da lei seca.
Gisela Cesário.