cárcere
Pelas leis brasileiras, ninguém pode ficar preso mais de
30 anos. O Universo, porém, não está nem aí pra isso. Eu estou presa nesse
corpo há 39 anos e alguns meses e dias. Condenada a uma pena desconhecida por
um crime ignorado. Estou presa num corpo cada vez mais cansado e menos disposto
a cooperar comigo. Muitas vezes quero andar mais e ouço um solene não dos meus
pés, meus joelhos cismam de doer se eu tentar correr como antes. No espelho me
olham uns olhos tristes, com rugas em volta, uns olhos fartos de tudo que já
viram, que não acreditam ou preferem nem olhar pro que estão vendo agora.
Meus pensamentos estão detidos numa cabeça gasta, que faz
a memória me trair. Quem eu era mesmo? Já estou aqui nesse corpo há tanto
tempo, vendo ele se desfazer, o que vim fazer aqui?
Me invade uma sensação de que eu sou uma árvore ou um poste,
algo que permanece enquanto as coisas passam. Passam por mim os verões, os
empregos, os homens, os natais, passa a dor e alegria, passam dias e mais dias,
por estranho que pareça, as noites passam menos ou vai ver que eu não reparo.
Passa até a eternidade que eu jurava era pra sempre.
Não existe prisão perpétua. O cadáver é o fim do cárcere.
Enterrem, queimem, doem pra USP, não me interessa. No dia em que sair desse
corpo, vou, por contraditório que soe, finalmente respirar.
Sim, o ar está cheio de liberdade, quero também ser ar ou
então nem isso, não quero moléculas, quero passar também, sair do meu ponto de
observação, não ver mais o que virá. Quero ir para algum lugar onde eu mesma
não esteja, nem ninguém, nem nada. Onde nem o vazio habita.
O fim do ser é o não ser. Sem nome, peso, CPF, cor dos
olhos, sem sonhos, currículo, fonte de renda, sem chance, sem perda, sem
obrigação. Sem palavras, sem explicações.
Adeus corpo cruel, tchau cabeça complicada, bye bye Brasil,
mundo e a puta que pariu.
A escrita é alma tentando fugir do corpo, ela tenta pela
boca e depois pelas mãos, mas ela nunca consegue sair da prisão da cabeça.
Hoje vou olhar meu corpo, minha cela, e decidir em que
canto vou dormir, se no tornozelo ou no cotovelo, posso também me espalhar e
dormir no corpo inteiro. Pena que não há surpresas, conheço cada canto desse
cárcere. E mesmo assim não acho a saída.
Algumas palavras, levadas por uns pensamentos, acabaram
de fugir, mas me deixaram aqui, como sempre, elas nunca me levam com elas.
Promessas. Agora eu acredito no fim ou só no fim eu acredito agora.
Contradição é vida. A favor é morte. Um lado só, adeus
dúvidas e dívidas e dádivas e proparoxítonas. Adeus, poesia boba.
Hoje é dia 23 de março de 2013.Estou presa aqui. Ainda.
1 Comments:
At 1:25 PM, ederson said…
MUITO BOM...
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