patavinas

Às vezes é difícil decidir o que dói mais, escrever ou engolir as palavras. Deixar que elas entrem em contato com tudo que está dentro da gente, deixar que elas se percam num estômago faminto, num coração acelerado ou num fígado mal-humorado.

Thursday, December 13, 2007

Reflexão de fim de ano ou Piada do Rolex

Tem uma piada muito conhecida sobre um cara que sofre um acidente de carro e sai desesperado, todo ensangüentado, preocupado apenas com o prejuízo do carro, gritando “Meu carro,meu carro..”. Alguém vê o cara todo machucado e fala: Esquece seu carro, olha o seu braço ( o cara tinha perdido a mão). Horrorizado, ele olha na direção do que devia ser o braço e grita: “Meu rolex! Meu rolex! Não!”.
Sempre penso nessa piada quando leio reclamações feitas por moradores de lugares nobres a respeito do que chamamos de “população de rua”. Aquelas pessoas que fingimos que não vemos porque não agüentamos pensar no porquê eles estão ali. Como no caso da piada do rolex, não importa que exista um ser humano meio morto meio vivo na calçada,as pessoas passam e gritam: “meu IPTU, meu IPTU!”
É uma injustiça alguém pagar um dos IPTUS mais caros do Brasil e não ser poupado da terrível visão da pobreza, pessoas que pagam um IPTU tão alto deviam ter o direito de andar em ruas suecas, com montinhos de neve acumulados aos pés dos postes.
Que o Iptu é caro, é. Que a calçada devia ser limpa, devia. Que temos o direito de exigir nossos direitos, temos. Mas que o maior direito de todos é o direito à vida, imagino que ninguém tem dúvida.
Após reclamar do IPTU, o argumento normalmente é o “Poder Público devia construir abrigos pra essa gente”. Argumento normalmente rebatido com “Isso já existe, eles não vão porque não querem.” Essa tese pode ser desenvolvida inclusive com dados estatísticos que mostram que, na verdade, todos os mendigos são, por baixo dos trapos, milionários disfarçados, pois ganham cerca de mil reais por dia pedindo esmola. As crianças pedem para mães que moram em mansões em são Conrado ou gastam tudo fazendo escova progressiva. Os paralíticos largam a cadeira de rodas e saem andando para suas coberturas na Vieira Souto, onde ainda fazem musculação antes de voltar pra dormir embaixo da marquise do Bob’s.
Por que raios nos preocupamos com as calçadas em vez de nos preocuparmos com as pessoas, assim como o cara da piada se preocupa com o rolex em vez do braço?
A sociedade, da qual somos parte, está mutilada, sangrando, agonizando, sem ter pra onde ir, nem onde tomar banho, nem o que comer, pra esquecer de tanta miséria, as crianças se drogam, fazem sexo, geram outras crianças que pedem mais esmolas e dormem em mais calçadas.
Perdemos, todos nós, nossa dignidade, nosso direito básico à saúde, educação, moradia. Perdemos nosso direito ao banho do outro, ao prato de comida do outro, cada pessoa ( sim, são pessoas!) dessas é um membro, um membro da sociedade que nós perdemos. Mas nós, como o cara do rolex, não estamos preocupados com nossos membros. Nós queremos é saber onde foi parar o nosso IPTU.
Não sei qual a solução. Mas talvez a solução dos meus e dos nossos problemas esteja em parar de pensar nesses problemas e começar a pensar nos problemas dos outros, que talvez sejam um pouco mais graves e talvez, só talvez, mereçam ocupar a cabeça de quem tem consciência para lutar pelos seus direitos.